post-header

Introdução

A dor no pescoço (dor cervical) é uma queixa comum na sociedade moderna, afetando anualmente cerca de 30–50% das pessoas. Essa condição pode resultar em limitação de movimentos, redução da qualidade de vida e absenteísmo no trabalho. Frequentemente, o manejo da dor cervical inclui medicamentos analgésicos, anti-inflamatórios e fisioterapia, mas nem sempre esses métodos proporcionam alívio completo. Nesse contexto, muitos pacientes buscam terapias complementares, como a acupuntura, para ajudar no controle da dor e evitar efeitos colaterais de medicamentos.

A acupuntura é uma técnica originária da medicina tradicional chinesa que, há milênios, utiliza a inserção de agulhas em pontos específicos do corpo para tratar diversas condições. Nos últimos anos, seu uso tem se difundido em países ocidentais, especialmente para tratar dores crônicas. Embora fundamentada tradicionalmente em conceitos energéticos, a eficácia da acupuntura pode ser explicada por mecanismos biológicos.

Estudos mostram que a acupuntura pode aliviar a dor no pescoço, porém os mecanismos exatos desse efeito analgésico ainda não estão totalmente esclarecidos. A seguir, abordaremos exclusivamente os mecanismos neurofisiológicos pelos quais a estimulação por agulhas influencia o sistema nervoso periférico e central para reduzir a dor cervical.

Mecanismos Neurofisiológicos da Acupuntura

Do ponto de vista neurofisiológico, a acupuntura desencadeia uma série de respostas no sistema nervoso que explicam seu efeito analgésico. A inserção das agulhas estimula terminações nervosas periféricas (fibras sensoriais) na pele e músculos, gerando impulsos elétricos que seguem através dos nervos até a medula espinhal e o cérebro.

Esse estímulo inicial provoca tanto efeitos locais quanto efeitos distantes, envolvendo diversos níveis do sistema nervoso:

  • Efeito local (periférico): No local da inserção, a agulha promove liberação de substâncias que modulam a dor. Um exemplo chave é a adenosina, um neuromodulador com propriedades anti-dor. Pesquisas demonstram que a estimulação por acupuntura aumenta a concentração de adenosina nos tecidos próximos à agulha, ativando receptores A1 que produzem analgesia. Esse efeito local também melhora a circulação sanguínea e relaxa pontos de tensão muscular, contribuindo para redução da dor na região estimulada.
  • Efeito segmentar (medula espinhal): Os impulsos sensoriais gerados pelas agulhas atingem a medula espinhal, onde podem modular a transmissão dos sinais dolorosos. A teoria do “controle do portão” (gate control) sugere que a estimulação não dolorosa das fibras nervosas de condução rápida (fibras A-beta, ativadas pela agulha) pode “fechar o portão” na substância gelatinosa do corno dorsal da medula, inibindo a passagem dos sinais de dor conduzidos por fibras mais lentas (A-delta e C). Em outras palavras, a chegada de impulsos gerados pela acupuntura no nível medular induz inibição pré-sináptica das fibras nociceptivas, “bloqueando” a transmissão da dor antes que ela siga para o cérebro. Esse mecanismo explica o alívio imediato que muitos pacientes sentem durante a sessão de acupuntura.
  • Efeito central (sistema nervoso central): Os estímulos da acupuntura também alcançam o cérebro, ativando circuitos neurais que diminuem a percepção da dor. A estimulação por agulhas desencadeia a liberação de neurotransmissores e neuropeptídeos envolvidos na analgesia endógena. Dentre os mais importantes estão os opioides endógenos – como endorfinas, encefalinas e dinorfinas – que são liberados tanto na medula quanto em áreas cerebrais, atuando em receptores opiáceos para reduzir a dor. Estudos indicam que a acupuntura aumenta a concentração de todos os principais tipos de opioides endógenos (beta-endorfinas, encefalinas, endomorfinas e dinorfinas) no sistema nervoso central. Além dos opioides, outros neurotransmissores inibitórios são modulados. Por exemplo, há evidências de que a acupuntura influencia níveis de serotonina e noradrenalina no sistema nervoso, os quais participam das vias inibitórias descendentes da dor.
  • Ativação de vias inibitórias descendentes: A estimulação de certos pontos pela acupuntura pode ativar regiões cerebrais que controlam a dor, como a substância cinzenta periaquedutal (no mesencéfalo) e núcleos no bulbo e ponte. Essas estruturas fazem parte de um sistema inibitório descendente que projeta de volta à medula espinhal fibras moduladoras. Como resultado, neurônios na medula liberam neurotransmissores e moduladores que suprimem a transmissão da dor, incluindo serotonina, ácido gama-aminobutírico (GABA), acetilcolina e também opioides endógenos. Esse circuito descendente (que envolve áreas como o periaqueduto cerebral, núcleo magno da rafe e locus ceruleus) funciona como uma espécie de “freio” que o cérebro impõe aos sinais dolorosos, reduzindo a intensidade da dor percebida. Estudos de neuroimagem corroboram essa ação central: por exemplo, em pacientes com enxaqueca, a acupuntura mostrou-se eficaz em normalizar a atividade funcional de regiões do tronco cerebral responsáveis pela modulação da dor.

Em resumo, a acupuntura desencadeia uma resposta integrada do sistema nervoso: inicialmente periférica (no local da agulha) e segmentar (na medula espinhal), que gera reflexos neuroquímicos em cascata, e subsequentemente central, promovendo liberação de substâncias analgésicas naturais do corpo e diminuindo a condução e a percepção da dor.

Essa compreensão neurofisiológica fornece uma base científica para os efeitos terapêuticos da acupuntura na dor cervical, em contraste com as explicações tradicionais baseadas em conceitos de energia ou meridianos.

Benefícios Comprovados da Acupuntura na Dor Cervical

acupuntura fmri

A eficácia da acupuntura para aliviar dores no pescoço tem suporte em diversos estudos clínicos. Ensaios controlados e revisões sistemáticas apontam que a acupuntura produz alívio significativo da dor cervical, especialmente em curto prazo. Uma revisão Cochrane de múltiplos estudos encontrou evidências de qualidade moderada de que pacientes com dor cervical que recebem acupuntura apresentam mais alívio da dor do que aqueles submetidos à acupuntura simulada (placebo), tanto ao final do tratamento quanto nas semanas seguintes. Esses pacientes também relataram menor grau de incapacidade em comparação a grupos em lista de espera (sem tratamento), sugerindo benefícios não só na intensidade da dor, mas também na melhora da função no pescoço.

Méta-análises quantitativas reforçam esses achados positivos. Em uma análise combinada de vários ensaios clínicos randomizados, verificou-se que a acupuntura proporcionou redução da dor cervical significativamente maior do que os controles (incluindo tratamentos convencionais ou nenhuma intervenção) em avaliações de curto prazo. Notavelmente, nessa mesma análise, a acupuntura verdadeira mostrou-se mais eficaz do que a acupuntura “sham” (agulhas inseridas superficialmente ou em pontos não verdadeiros) no alívio da dor, indicando que seus efeitos excedem o mero placebo. Por exemplo, um estudo clínico com pacientes de espondilose cervical constatou que aqueles tratados com acupuntura otimizada tiveram uma diminuição da dor mais pronunciada do que grupos submetidos a acupuntura superficial ou falsa, com diferenças estatisticamente significativas mantidas semanas após o tratamento. Esses resultados demonstram que a inserção correta das agulhas nos pontos adequados produz um efeito real de analgesia.

Embora os benefícios de curto prazo sejam consistentes — com melhora na intensidade da dor e na mobilidade do pescoço — a duração prolongada desses efeitos ainda é investigada. Alguns estudos sugerem que a manutenção do alívio pode requerer sessões periódicas, pois o efeito tende a diminuir gradualmente em longo prazo se não houver reforço do tratamento. Ainda assim, a acupuntura apresenta-se como uma ferramenta valiosa no manejo da dor cervical crônica, podendo complementar os cuidados convencionais. Importante notar que a maioria dos estudos também reporta que a acupuntura é segura e bem tolerada, com baixa incidência de efeitos adversos significativos, conforme discutido adiante.

Hipóteses em Estudo e Mecanismos Adicionais

acupuntura13

Apesar dos avanços no entendimento dos mecanismos da acupuntura, a comunidade científica continua investigando detalhes adicionais de como essa técnica produz alívio da dor cervical. Uma área ativa de pesquisa envolve o uso de neuroimagem funcional (fMRI) para mapear mudanças na atividade cerebral associadas à acupuntura. Por exemplo, estão em andamento estudos para observar quais regiões do cérebro de pacientes com dor cervical crônica são moduladas durante e após um curso de tratamento com acupuntura. A hipótese é que a acupuntura possa “recalibrar” circuitos neurais disfuncionais envolvidos na cronificação da dor. Em pacientes com dor cervical, já se relataram alterações em áreas sensorimotoras e de integração da dor no cérebro, e acredita-se que a acupuntura possa normalizar essas atividades anômalas, contribuindo para o alívio sustentado.

No nível molecular, pesquisas recentes exploram como a acupuntura influencia mediadores bioquímicos da dor e da inflamação. Uma dessas linhas investiga a substância P, um neuropeptídeo envolvido na transmissão da dor e na neuroinflamação. Estudos em pacientes com dor cervical crônica sugerem que a estimulação por agulhas pode reduzir os níveis circulantes de substância P. Em um experimento, mulheres de meia-idade com dor cervical submetidas a 4 semanas de acupuntura apresentaram uma diminuição significativa dos níveis de substância P no sangue, acompanhada por redução na intensidade da dor relatada. Essa observação levanta a possibilidade de que a acupuntura atue também modulando a “sensibilização central” – um fenômeno em que o sistema nervoso se torna hiper-reativo à dor crônica. Se a acupuntura consegue atenuar essa sensibilização (por meio da queda de mediadores excitatórios como a substância P), isso explicaria em parte seus efeitos benéficos na dor persistente.

Outras hipóteses em estudo incluem a investigação de marcadores inflamatórios e imunológicos. Há indícios de que a acupuntura possa aumentar a liberação de citocinas anti-inflamatórias (como a IL-10) e reduzir a atividade de vias pró-inflamatórias em modelos de dor neuropática, o que poderia igualmente se aplicar à dor musculoesquelética crônica. Além disso, pesquisadores analisam se estímulos em pontos de acupuntura específicos produzem respostas diferentes no cérebro em comparação à estimulação de pontos não tradicionais, buscando entender a relevância dos “acupontos” clássicos em termos neuroanatômicos. Também se considera o papel do efeito placebo e das expectativas do paciente: embora a acupuntura real supere o placebo em ensaios, a experiência e crença do paciente podem modular a resposta à terapia, possivelmente através de vias neuropsicológicas compartilhadas com a analgesia induzida por placebo.

Em suma, enquanto a eficácia clínica da acupuntura na dor cervical já é respaldada por evidências, os mecanismos exatos continuam a ser desvendados. Novos estudos estão aprofundando a compreensão sobre como a acupuntura interage com o sistema nervoso – seja ajustando neurotransmissores, modulando a atividade cerebral ou influenciando mediadores químicos da dor. A expectativa é de que essas pesquisas ampliem a aceitação da acupuntura na comunidade médica ao fornecer bases neurobiológicas sólidas para sua utilização.

Considerações Finais

A acupuntura, explicada em termos neurofisiológicos, mostra-se como uma aliada importante no tratamento da dor no pescoço. Seus benefícios decorrem da capacidade de recrutar os mecanismos naturais de modulação da dor do organismo – desde a liberação local de substâncias analgésicas até a ativação de centros cerebrais que controlam a dor – resultando em alívio significativo para muitos pacientes. Como terapia complementar, a acupuntura pode ser integrada a programas de reabilitação e tratamento convencional da dor cervical, somando-se a medidas como exercícios, fisioterapia e medicação, conforme a necessidade de cada caso.

Do ponto de vista da eficácia, as evidências sugerem que a acupuntura oferece alívio especialmente no curto e médio prazo, podendo melhorar tanto a dor quanto a função do pescoço. Alguns pacientes relatam prolongamento dos benefícios com sessões regulares, indicando que a estratégia de manutenção pode ser útil em casos crônicos. Vale ressaltar que a acupuntura apresenta um bom perfil de segurança quando realizada por profissionais qualificados: os efeitos adversos reportados tendem a ser leves e transitórios, como pequenos hematomas, sensação de relaxamento exagerado ou tontura passageira, sem riscos graves envolvidos. Assim, trata-se de um tratamento de baixo risco e potencialmente custo-efetivo para o manejo da dor.

É fundamental, entretanto, situar a acupuntura como um complemento e não substituto dos cuidados médicos tradicionais. Condições cervicais podem ter causas estruturais sérias (como hérnias de disco, estenoses ou outras patologias) que requerem diagnóstico e tratamento médico específico. Por isso, indivíduos com dor no pescoço devem procurar avaliação médica para esclarecimento da causa. Uma vez estabelecido o diagnóstico e iniciado o tratamento convencional apropriado, a acupuntura pode ser adicionada de forma integrada. Diretrizes atuais de dor crônica frequentemente incluem a acupuntura entre as opções não farmacológicas recomendadas. O consenso é de que o melhor resultado costuma advir da combinação de abordagens. De fato, especialistas alertam que tratar a dor cervical apenas com acupuntura, sem orientação médica, pode mascarar problemas subjacentes e atrasar intervenções necessárias. Portanto, o uso responsável da acupuntura envolve integrá-la ao plano terapêutico global do paciente, sempre com acompanhamento de profissionais de saúde.

Concluindo, ao focar nos mecanismos neurofisiológicos, evidencia-se que a acupuntura promove um efeito analgésico real por meio da interação com o sistema nervoso, desencadeando desde bloqueios na condução dos estímulos dolorosos até a liberação de substâncias inibitórias no cérebro e medula. Esses achados científicos ajudam a legitimar a acupuntura como uma modalidade eficaz de tratamento complementar para a dor no pescoço. Quando utilizada de maneira informada e integrada, a acupuntura pode melhorar a qualidade de vida de pacientes com dor cervical, proporcionando alívio da dor e auxiliando na retomada das atividades cotidianas de forma mais confortável e saudável.

0ae37604e89af20ceb04a8174fec806e?s=150&d=mp&r=g
Website |  + posts

CRM-SP: 158074 / RQE: 65523 - 65524

Médico especialista em Fisiatria e Acupuntura. Área de Atuação em Dor pela AMB. Doutorado em Ciências pela USP. Pesquisador e Colaborador do Grupo de Dor do Departamento de Neurologia do HC-FMUSP. Diretor de Marketing do Colégio Médico de Acupuntura do Estado de São Paulo (CMAeSP). Integrante da Câmara Técnica de Acupuntura do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP). Secretário do Comitê de Acupuntura da Sociedade Brasileira para Estudo da Dor (SBED). Presidente do Comitê de Acupuntura da Sociedade Brasileira de Regeneração Tecidual (SBRET). Professor convidado do Curso de Pós-Graduação em Dor da Universidade de São Paulo (USP). Membro do Conselho Revisor - Medicina Física e Reabilitação da Journal of the Brazilian Medical Association (AMB).